Como imigrante pela terceira vez na minha vida (Portugal, Arábia Saudita e Austrália), tenho algumas histórias para contar sobre preconceito. Felizmente posso dizer que até hoje não fui seriamente prejudicada por ser diferente, mas já passei por algumas situações bastante desagradáveis, públicas ou não. E isso me fez pensar bastante sobre quem tem a vida feita de cabeça para baixo por não ser igual à maioria. Muitos seres humanos têm medo ou se sentem desconfortáveis com o que é diferente do que está ao seu redor, alguns de nós ainda possuem aquele cérebro ancestral de milênios atrás, que faz com que a gente queira eliminar uma tribo diferente para evitar que ela roube o pão nosso de cada dia, no sentido real ou figurativo da coisa. Pode ser o nosso prestígio, as nossas certezas ou literalmente o nosso pão. Confesso que, quando perguntada sobre o que acho do ser humano em geral, a primeira resposta automática é que somos seres maravilhosos e que temos muitas coisas boas para oferecer uns aos outros. Mas quando me ponho a refletir sobre o que acabei de responder, começo a pensar que não é bem assim. Vemos nos jornais e ouvimos dos nossos conhecidos todos os dias: crianças são abusadas, velhotes são maltratados, pessoas são assassinadas, outros vão parar no hospital por causa de acidentes de trânsito onde um dos motoristas estava drogado, outros tantos são assaltados e perdem o dinheiro do mês inteiro... todo dia essas coisas acontecem, então talvez não sejamos tão maravilhosos assim.
A questão é que tentamos mitigar os riscos de passar por situações ruins criando regras ou usando descritores para tentar enquadrar alguém potencialmente “perigoso” de forma rápida e fácil, ao alcance das nossas mãos. Usamos a lógica de uma forma ilógica, fazendo associações que levam a mais confusão do que ajudam a resolver qualquer problema que seja. Não vou dizer que estou isenta disso: muitas vezes eu fui essa pessoa classificando todo mundo para conseguir sobreviver ou passar na frente. Infelizmente, só depois de ter passado para o outro grupo, o dos que sofrem preconceito, foi que eu entendi o quão errada ou pelo menos ineficaz é essa categorização. Mas, antes tarde do que nunca.
Como brasileira em Portugal não posso me queixar de quase nada. Sempre fui muito bem tratada, fiz um círculo de amigos que carrego comigo até hoje e talvez por estar sempre rodeada de portugueses, nunca tive muitos problemas. Mas numa ocasião, quando eu morava no Bairro Alto (bairro boêmio de Lisboa), tive que chamar a polícia. Em frente ao meu prédio ficava um bar, frequentado pelos bêbados locais. Ficavam até altas horas da noite, durante a semana, falando alto, bebendo sem parar e volta e meia brigando entre si. Um deles ia com a minha cara e gostava de ficar apoiado na entrada do meu prédio, sempre me dando boa noite quando eu chegava em casa, apesar de eu nunca responder. Bem, nessa época eu dava plantões e como saía do hospital às 21h, chegava em casa depois das 22h. Um dia ele resolveu ficar parado em frente à porta, impedindo a minha entrada no prédio. Me fingi de forte e mandei ele sair da minha frente, com as pernas tremendo subi as escadas estreitas do prédio e entrei em casa correndo para chamar a polícia. O policial que atendeu a minha chamada identificou o meu sotaque e nem me deixou terminar a história. Disse que lá não era o país das bananas e que eu não podia ficar andando pelas ruas com roupas que chamem a atenção dos homens e reclamar das consequências. Como é que é? Ele assumiu que, por ser brasileira, eu estaria usando uma roupa indecente, logo chamei a atenção do tal senhor, por isso não podia reclamar. E se fosse mesmo o caso? O que é que isso tem a ver com o fato de ter alguém na porta da minha casa, me intimidando? Como nos casos de mulheres que são abusadas sexualmente em alguns países do Oriente Médio e são presas por terem feito sexo fora do casamento. Nenhuma parte do "argumento" dele fez sentido.
Na Arábia Saudita, o primeiro preconceito que sofri foi “benigno”, mas mesmo assim sem noção. Não queriam acreditar que eu era brasileira porque sou “branca” (vou voltar ao assunto da cor de pele em breve). Me disseram que fizeram uma pesquisa na internet sobre brasileiros e não viram ninguém da minha cor. Ficaram muito desapontados. O preconceito mais forte que sofri na Arábia foi, como era de se esperar, o fato de ser mulher. Ser mulher e estrangeira me colocava numa categoria intermediária, na qual eu não era considerada mulher muçulmana, mas jamais homem. Por isso, tinha acesso a coisas que as sauditas ou as muçulmanas de outras nacionalidades não tinham, o que me deixava ainda mais irritada porque o preconceito ficava ainda mais patente (se é que isso era possível). Quando disse ao meu chefe que um dos meus sobrenomes é judeu, apesar de eu não ser judia, nem na nacionalidade, nem na cultura e muito menos na religião, ele me disse que era melhor eu não falar sobre isso com todo mundo. Mas eu acabei de dizer que não tenho nada a ver com os judeus, disse eu. Não importa. Temos saquinhos para tudo, e você acabou se ser colocada no saquinho dos infiéis. Ele não disse, mas suspeito que pensou.
Aqui na Austrália sofri um preconceito indireto, por falta de melhor palavra. Fui contratada por um homem horrível que se colocava na posição de benfeitor e salvador dos desgraçados do terceiro mundo como eu (apesar de ter sido ele a me oferecer emprego, sem eu nunca tê-lo contactado, nem nunca ter tido interesse antes do convite dele de vir morar na Austrália). Frases como “fico feliz por te dar a oportunidade de morar num país maravilhoso como a Austrália” ou “imagino o que você sofreu vivendo no Brasil, que bom que agora você não precisa mais voltar para lá” eram sempre o prato do dia quando falava com ele. Ao que eu respondia quase sempre, realmente, sofria muito com o calor do Rio de Janeiro, o verão de Newcastle é maravilhoso mesmo, fico feliz de poder passar os meus verões aqui agora. Na Austrália não sou branca, tenho uma “linda pele cor de oliva” e, quando juntam o meu sotaque, sou colocada no saquinho dos imigrantes de pele oliva. Ninguém merece.
A minha vida no Brasil nunca foi marcada por preconceito. Talvez o que os outros chamam hoje de bullying, mas não preconceito. Nunca fui impedida de fazer nada por ser quem eu era. Nunca tive que agradecer a ninguém por me salvar da miséria; nunca tive emprego, estágio, conta de banco recusados pela minha cor, minha profissão, minhas origens ou minhas crenças (ou a falta delas). Quando saí do meu país sabia que estaria sujeita a sofrer preconceitos e que eu seria sempre a diferente, apesar de não saber exatamente como seria. Mas algumas pessoas não conseguem viver em paz no país onde nasceram por simplesmente serem quem são. Isso tudo porque foram colocadas dentro de um saquinho desde o dia em que chegaram ao mundo, ou antes mesmo disto. Pagam pelos livros de história e pelas notícias dos jornais.
Claro, é o que eu sempre digo e cada vez com mais propriedade: países diferentes têm culturas diferentes. Poxa, famílias diferentes têm culturas diferentes, não precisa nem sair da rua onde você mora para encontrar diversidade. Italianos têm maior chance de serem atraídos por massas, enquanto que alemães provavelmente não recusarão uma salsicha. Ok, essas particularidades existem, mas é preciso ter cuidado. Não dá para ter certezas sobre o individual ao julgar todo um grupo. Brasileiros gostam de churrasco; a Juliana é brasileira; logo, vou fazer um churrasco de boas-vindas quando ela vier me visitar porque, como brasileira, ela vai gostar. Só que a Juliana, no caso eu mesma, nem carne vermelha come. Por exemplo, se eu disser para vocês que hoje à noite receberão um visitante do Kiribati (é um país), como é que vão planejar recebê-lo? Todo muçulmano é homem-bomba? Todo indiano faz yoga? Falar sobre cultura é um pouco complicado, porque pode mesmo prejudicar uma interação saudável. Recentemente na Austrália surgiram algumas notícias nos jornais sobre as muçulmanas que vivem aqui, que se recusavam a tirar o niqab (tecido que cobre o rosto das mulheres), ou cujos maridos as impediam de o fazer, quando eram paradas pela polícia por qualquer motivo, como ao levar uma multa de trânsito, por exemplo. Isso é um problema real, causado por diferenças culturais, mas é outro assunto. Acaba levando a preconceito, mas o preconceito não é o cerne da questão.
Quando o preconceito é mais “maligno”, toda uma sociedade pode ser afetada. Cria-se um círculo vicioso, onde exclui-se os que têm a pele, a religião, a língua, a origem, e/ou os costumes e sei lá mais o que azuis de bolinhas amarelas consistentemente, fazendo com que eles não tenham acesso às mesmas oportunidades (transporte, cultura, diversão, saúde, emprego, educação e por aí vai) que os de pele, religião, língua, origem e/ou costumes e sei lá mais o que dos vermelhos de listras roxas. Avalia-se o currículo de dois candidatos excelentes e escolhe-se um deles por um critério não relacionado à sua qualificação porque, se ela é assim ou assado, provavelmente fará isso ou aquilo. Para mim, a única característica que está fora de possibilidade de encarar é ser ruim. Não gosto e nem sei lidar com gente ruim, o resto eu aturo. Não digo com isso que temos que ser amigos ou gostar de todo mundo, nem pensar. Algumas coisas vão contra a nossa natureza, contra as nossas crenças e não nos fazem bem, não somos obrigados a participar. Mas também acho que não temos o direito de prejudicar alguém pelo simples fato de não serem ou pensarem como nós. Acho que devemos tratar as pessoas como iguais e oferecer a todos as mesmas oportunidades; se todo mundo vai aproveitar isso eu já não sei, essa decisão tem que partir do outro, não de mim. Mas não dá para ter tempos diferentes para começar a maratona e querer que todo mundo termine em primeiro lugar.
Enfim, diferenças são boas. Ser diferente não significa ser mau, ruim, desnecessário. Pelo contrário, na maior parte do tempo acho que os seres humanos são maravilhosos e que têm muitas coisas a ensinar uns aos outros (mas sei que nem todos, ok). Vale a pena sair do nosso pedestal para nos misturar à multidão, a festa é bem mais animada quando estamos todos juntos.
1. Ideia ou conceito formado antecipadamente e sem fundamento sério ou imparcial.
2. Opinião desfavorável que não é baseada em dados objetivos. = INTOLERÂNCIA
3. Estado de abusão, de cegueira moral.
4. Superstição.
"preconceito", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, https://priberam.pt/dlpo/preconceito