Capítulo 2 - Rio Comprido
Então a Prum me pegou, enrolada num pedaço de pano e com um laçarote azul maior do que a minha cabeça em volta do pescoço e me colocou dentro do carro. Ela estava muito maravilhada (eu era o primeiro gato da vida dela; ela tinha um cágado que ela chamava de Tuga pq achava que era fêmea, mas acabou descobrindo que era macho, e tinha tido um hamster, Johnny, que durou menos de 2 anos e que não cheguei a conhecer) e meio sem jeito, que não sabia direito onde me colocar. O irmão da Prum foi com ela me buscar (inclusive eu descobri depois que a intenção inicial era fazer dele o meu humano, mas a conexão com a Prum foi instântanea e em poucos segundos nós 3 entendemos quem era de quem - a Prum minha, óbvio). Lá pelo meio da viagem eu acabei indo parar no colo dela, que adorou a nova configuração, mas ao mesmo tempo que me equilibrava tentava dirigir o carro. Resolvi aproveitar para tirar uma soneca, a primeira das milhões da minha vida, enquanto não chégavamos ao nosso destino.
A minha casa nova era bem maior do que a antiga. Tinha 2 andares, piscina e uma varandinha no andar de baixo, onde eu às vezes me escondia. Assim que eu cheguei, a escada era um desafio, já que com 1,5 mês de idade as minhas patinhas não alcançavam a altura do degrau pra subir (mas pra descer era uma diversão). O meu quarto, onde a Prum dormia, era no segundo andar, então eles tiveram que instalar provisoriamente todos os meus apetrechos por lá - caixinha de areia e potinhos de comida, água e leite. O primeiro xixi na casa nova foi num ponto bem estratégico: fui para debaixo da escrivaninha onde ficava o computador e me alojei no meio dos fios, para então relaxar os meus esfíncteres. A Prum esperou eu terminar os trabalhos pra então esfregar a minha carinha no xixi e depois me jogar dentro da caixinha de areia. Não entendi o drama, podia só ter me dito o que fazer. De qualquer forma, do segundo xixi em diante foi tudo dentro das inúmeras caixinhas que tive pela vida afora, com exceção das vezes em que consegui fazer nos tapetes dos banheiros (e algumas vezes, nos das cozinhas), o que era uma aventura excitante. Raramente fui pega em flagrante nos tapetes (mas quando fui, a reação não foi a comemoração que eu esperava) e sempre finjo que não é comigo quando a Prum faz cara feia ao se agachar no chão para confirmar de onde vem aquele cheiro menos agradável.
Como era de se esperar, eu era a rainha da casa. A Prum, o irmão e a mãe dela achavam tudo o que eu fazia lindo (porque era) e vivam falando de mim para todo mundo. Às vezes, a mãe da Prum recebia visitas dos vizinhos que não estavam se sentindo muito bem e, enquanto ela verificava a pressão ou a temperatura dos visitantes, eu escalava as cortinas compridas da sala para fazer uma demonstração do meu preparo físico e ajudar os doentinhos a melhorarem mais rápido. A mãe da Prum ficava envergonhada e sempre pedia desculpas porque achava que eu estava assustando as velhotas. Besteira. Eu também gostava de visitas porque quando eles abriam a porta eu saía em disparada para o corredor do prédio, e algumas vezes tive a sorte de encontrar a porta que dava para a escada de emergência aberta. Rapidamente eu entrava pela fresta da porta e começava a minha corrida escada abaixo, até ser agarrada por um dos 3 e levada de volta pra casa. Quando eu fiquei mais compridinha, entrar no armário virou mania, o que faço até hoje. Pulava por cima das gavetas e me instalava no meio das roupas. Nem sempre eles sabiam onde eu estava, então às vezes eu ganhava horas de soneca protegida e com a porta fechada, enquanto escutava eles chamarem o meu nome com um certo pânico por não me acharem.
Os meus humanos achavam que com a minha presença no apartamento não haveria mais baratas, lagartixas ou coisas afins. Levaram um tempo para entender que o meu papel é decorativo e holístico; não incluía me sujar com sangue ou gosmas alheias. Isso é trabalho de operário, não de gata maravilha. Em poucos meses eu deixei o leite e me viciei em frango e milho. Sim, milho, e daí? Aposto que você come coisas muito mais estranhas. Dormia espalhada nas pernas da Prum, o que também faço até hoje. E a minha vida era tranquila até a Prum resolver que eu precisava de compania.
A Prum então decidiu que seria uma boa ideia me emprenhar. Assim começou uma missão que terminou com a adoção de uma outra gata, a Charlotte. Mas antes disso, tive dois encontros amorosos: um com o Flynn e o outro com o gato vizinho. Com o Flynn, foi um desastre. A Prum achou por bem me levar pra casa dele (o que já está ao contrário, pra início de conversa) e nós não nos entendemos. Eu fiquei tão nervosa com a situação que enquanto fugia do gato (e ele de mim), eu ia fazendo tóti (vulgo cocô) em todo canto, tóti que enventualmente ficou líquido e manchou algumas coisas, incluindo o sofá claro que a humana do Flynn tinha. A Prum ficou arrasada e muito envergonhada pelos meus tótis fora de lugar (eu também ficaria, se não estivesse tão preocupada em fugir do Flynn e sair daquela casa que não tinha nenhum cheiro familiar). Depois de 24h a Prum foi me buscar e me levou de volta pra casa, sem termos tido consumado o nosso encontro. Com o gato do vizinho foi bem diferente: eu sempre senti o cheirinho dele no nosso corredor e volta e meia ele entrava lá em casa pra "ver qual é", então quando entrei no cio foi quase automático. Depois disso às vezes nos cheirávamos mais de perto e eu não implicava quando ele visitava, mas ele era uns 13 anos mais velho do que eu e o nosso encontro não rendeu filhotes. Como fizemos muito escândalo, a Prum achou melhor não tentar de novo, e acabou trazendo a Charlotte pra casa, achando que eu iria gostar. Mas eu não gostei!
A Charlotte é 1 ano mais nova do que eu e esquálida. Como nasceu na rua, ela é super ágil e rápida, enquanto eu sempre fui mais realeza. Resumindo, ela sempre chegava antes no pote de comida e, por ser pequena, a Prum dava leitinho pra ela. Isso tudo me deixou muitíssimo irritada, e em poucas horas depois de ter visto a Charlotte invadindo a minha praia, voltei a beber leite e passei a comer a comida toda que a Prum deixava o mais rápido possível, para não deixar nada pra Charlotte. A pobre nem ligava muito, e na verdade me adorava (compreensível). Ela tinha hábitos nojentos como matar lagartixas e trazê-las para dentro de casa, fugir para a cobertura dos vizinhos e me seguir por todos os cantos. Realmente desagradável. A Prum, sentindo o meu desconforto, viu que só havia uma coisa a fazer: mudar de casa. E assim começou a nossa peregrinação, que ao todo e até hoje soma 9 mudanças, 9 casas diferentes e 1 ano sabático meu em Dubai, onde morei num gatil. E entre viagens de carro, avião e trem, fui vivendo até hoje.